segunda-feira, 13 de junho de 2016

A condessa d'Alfasina

Nos dias da regência de D. Fernando (1853-1855), F. C. era um rapaz alto, bem posto, moreno, ou antes azeitonado dos climas d'Africa, onde passara alguns annos. Olhos castanhos de boa luz, sobrancelhas espessas e moço sobretudo distincto. Quando, já velho, entrava na camara dos pares e cumprimentava o presidente, ninguém o fazia com mais senhoril e natural elegância.

Uma extensa vista de Lisboa no rio Tejo com a praça do Terreiro do Paço, a velha catedral e o castelo de S. Jorge, Joseph, ou Giuseppe, Schranz, depois de 1834.
Imagem: MAGNOLIA BOX

A condessa D... namorou-se perdidamente d'elle. A condessa D... era a tentação feita mulher. Ainda ha por ahi, senão muitos, pelo menos alguns velhos, como eu, que a conheceram. 

Estou a vêl-a!... Pupilla negra, nadando no crystal da esclerotica. Pestanas recurvas cerrando-se, ás vezes, com voluptuosidade de sonho sensual, para em seguida, entreabrindo-se, partir a seta faiscante, pérfida, mortal e divina!

Os arcos das sobrancelhas estreitos, porém pronunciados. Nariz delicado; as azas a palpitar, aurindo ás correntes vivas dos dias vernos dos vinte e cinco a vinte e seis annos.  Lábios carnudos, um pouco desunidos no meio, como o botão vermelho, e entremostrando apenas as preciosas pérolas. N'uma das faces, próximo ao canto da bôcca, um pequeno lunar. Colorido forte, supremo encanto das morenas, em ondas, se a commoção era violenta. 

Delgada e flexivel como o vime. Cingindo-se no amante appetecido teria a lubricidade venenosa da serpente e a ternura solicita das heras. Pagã e mystica. Aphrodite e Santa Philomena dos bosques. Invulnerável á dedicação constante e apaixonada, como se Cupido lhe houvesse inoculado o antídoto do amor ideal no sangue impetuoso. Hysterica; a hysterica na sensualidade é de tal modo ardente e requintada que não chega nunca a realisar as ambições desenfreadas dos seus nervos.

Nu feminino reclinado, Amélie, daguerreótipo, Félix-Jacques Moulin, c.1852-1853.
Imagem: Wikipedia

Ai do homem que lhe cae nos braços! F. C. foi, entre tantos, o único que a volúvel condessa D... amou longamente; mas não podendo, coitada, resistir ao seu temperamento, veiu a trahil-o com D. Fernando.

Uma noite, no Paço das Necessidades, pouco antes de romper a alvorada, despediu-se caridosamente do rei.

Á Pampulha metteu-se n'um bote, atravessou o Tejo, veiu aqui para Alfasina, que me fica a dois passos, e, n'uma casa situada n'um ponto de vista deslumbrador, consorciou-se com alguém, que não sei se ainda vive.

Caparica, miradouro de Alfazina, 2014.
Imagem: Coysas, Loysas, Tralhas Velhas...

F. C, ao tempo, era já casado, estava longe das verduras da mocidade, e, sabendo da ultima cartada que jogara a sua antiga amante, sorriu-se com motejador contentamento. D. Fernando acudiu a Shakespeare para definir, despeitado, o caracter da condessa:

D. Fernando II e sua segunda esposa, Elise Hensler, condessa d'Edla.
Imagem: Wikipédia

— "Pérfida como a onda!" (1)


(1) Bulhão Pato, Memórias Vol. III, Quadrinhos de outras éphocas, Lisboa, Typographia da Academia Real das Sciencias, 1907

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