sexta-feira, 13 de novembro de 2015

A falua do Bugio

José António Rocha casou com D. Ermelinda Maria Madalena Lopes Rocha, neta do muito conhecido e não menos famoso "patrão Lopes", de Paço de Arcos, de cujo matrimónio houve os seguintes filhos: João, Manuel, Domingos, José António Rocha Júnior, Carlos, Ermelinda, António, Ana, Vasco e Quirino; (1)

Trafaria, Vista parcial e estrada da Costa, ed. J. Quirino Rocha, 2, década de 1900.
Imagem: Delcampe

Joaquim Lopes (1798-1890)

Nem só os homens que illuminam o mundo com descobertas scientificas beneficiam a humanidade. Eguaes, se não superiores, serviços prestam tambem aquelles que enxugam as lagrimas dos desgraçados, e salvam os afflictos dos perigos que os roubariam á vida, ao amor, e á felicidade da familia. Estes, além de admirar a intelligencia pela raridade da abnegação e heroicidade da coragem, tocam e purificam o coração [...]

Patrão Lopes, Archivo Pittoresco, 1859.
Imagem: Hemeroteca Digital

Grande satisfação é ver correr o nome nas azas velozes da fama por todo o orbe terrestre; mas muito maior deve ser a que se experimenta ao sentir o peito banhado pelas lagrimas e fervorosamente apertado pelos abraços do reconhecimento de um homem que nos agradece a salvação da sua vida e do amor, porque toca os extremos do gozo espiritual, e é filho da maior homenagem que se pôde prestar a um ser humano, que o assimila a Divindade. Deixando-nos, pois, guiar pela gratidão e pela justiça, traçamos o retrato biographico do humanitario Joaquim Lopes.

O intrepido maritimo, o ousado nadador, e inexcedivel amigo da humanidade, que tantos naufragados ha salvado das ondas famintas que banham os escolhos da barra de Lisboa, nasceu em Olhão a 19 de Agosto de 1798, e é filho de Francisco Lopes, pescador e de Rosa Maria.

Aos seis anos de edade entrou na eschola, onde prendeu a ler e escrever, como se póde aprender uma eschola em Olhão. Como, felizmente, ainda não chegou aos pescadores a monomania de metter os filhos na universidade e Coimbra, e quando mesmo houvesse chegado, lhe faltariam os meios, o nosso joven algarvio saiu, aos dez annos, da eschola para cultivar com seu pae arte da pesca, onde, mais tarde, devia adquirir esse ;afiliar conhecimento da barra de Lisboa, a que desde o triumpho dos  nobres arrojos que o recommendam á gratidão da humanidade.

Naufrágio de embarcação com bandeira portuguesa, Luis Ascêncio Tomasini (1823 - 1902), 1880.
Imagem: Cabral Moncada Leilões

N'esse tempo, Joaquim Lopes não pensava senão em ser pescador dos largos mares, e, sobre tudo, rico. Porque mui pouco lucrativa era a pesca nas costas do Algarve, pediu a seus paes que o deixassem ir exercel-a em Gibraltar, para onde, com effeito, partiu; mas, tendo-lhe a sina decretado á nascença lhe só seria rico e bem succedido pelos dotes inexcedivelmente elevados do seu coração e da sua alma, não foi ahi mais feliz, e regressou á patria, mallogrado nos seus intentos, 11 mezes depois.

Então, parece que a Providencia, querendo representar-se por um homem nos perigos que as tempestades arrojam á barra de Lisboa, o aconselhara a ir para as canóas de pesca de Paço d'Arcos. Foi n'estas canóas que Joaquim Lopes, dotado do nobre estimulo da distincção pelo proprio merito, fez, como elle diz, um estudo particular da barra, e se tornou, em mui pouco tempo, o mais profundo conhecedor dos baixos, chamados cachopos, que a marginam.

Paço d'Arcos, Vista parcial, ed. Alberto Malva/Malva & Roque, 113, década de 1900.
Imagem: Delcampe

Estamos ás portas d'esse futuro que abriu ao nosso vencedor das tormentas uma vida, não de interesses materiaes, mas de triumphos e glorias. Tão honrado, affavel, sincero e leal para com seus companheiros, quanto intrepido e habilidoso na navegação da barra, Joaquim Lopes conquistou de rapido um nome duplamente prestigioso, e, em breve, pela fama, o procuram para remador da falua do Bugio, lugar que acceitou em 1820.

A datar d'esta epocha não temos a folhear na sua vida senão paginas de amor e heroismo. A primeira que a sua humanidade e coragem lavraram foi em 29 de julho de 1823.

Assistia Joaquim Lopes a uma funcção religiosa na quinta do Arieiro, proxima ao rio da praia de Oeiras, o qual, n'esse dia, por ter a bocca obstruida pelas areias, formava pela terra dentro uma larga lagoa, em alguns pontos caudalosa, quando sentiu um grande alarido entre o povo, e, attentando, viu que era por causa de um homem que, atravessando a dita lagoa com um rapaz, seu irmão, ás costas, e, tendo-lhe faltado pé, largara a pobre criança, para só tratar de salvar-se.

— "Assim que deparei com similhante scena ", diz elle, "parece que a Divina Providencia me deu um rasgo tão forte no coração, que mesmo vestido e calçado me lancei á agua, e fui na direcção do desgraçado mancebo."

Inda assim, todos reputaram perdida a victima, quando a viram afundar-se. Mas Joaquim Lopes não descrê: prosegue com mais velocidade, ganha n'um momento a distancia de uns trinta passos, que tanto faltava para chegar ao logar fatal, e ali desapparece. Succedem alguns instantes de pavoroso silencio, durante os quaes o grito da consternação pende, apenas, dos labios dos espectadores receiosos. 

De repente, dois vultos assomam ao lume d'agua: é Joaquim Lopes que, segurando com o braço esquerdo a criança, ja meia moribunda, nada para a terra com o fogo da alegria scintillando-lhe nos olhos! 

Não termina, porém, aqui, esta verdadeira epopéa. Depois dc ter posto o infeliz em terra, lança-se outra vez ao rio para salvar o outro, prestes a afogar-se lambem; e, não obstante haver excedido as forças, o estorvo e peso enorme que o fato encharcado lhe o seu nado é ainda ligeiro, activo, veloz. 

O resultado não foi menos triumphante, e, a uma hora, Lopes volvia a folgar na festividade, por entre os abraços freneticos dos seus amigos e enthusiasticas saudações do povo. 

Folheemos.

Pouco tempo depois, estando o nosso heroe na torre do Bugio, uma onda envolve um cabo de artilharia que passava de uma cabeça d'areia para a fortaleza.

— "Joaquim Lopes! Joaquim Lopes!"

Foi o brado de soccorro que a um tempo rebentou logo nos labios de seus companheiros. Tão expedito na reflexão, como corajoso e humano, Joaquim Lopes toma immediatamente um cabo, deixa uma das pontas d'este nas mãos dos seus companheiros, lança-se ao mar, e, conseguindo segurar a victima, amarra-a por debaixo dos braços, grita aos collegas que a puxem, e amparando-a, ao passo que nadava, assim consegue salval-a. 

Pela mesma forma livrou do abysmo das ondas, em 1828, um sargento de veteranos, por nome Francisco de Sales.

A 18 de maio de 1833 fallece o patrão da falua. Segundo a lei, o logar pertence ao mais antigo dos remadores; mas sendo estes chamados pelo governador para darem o seu voto sobre o novo patrão, a eleição recae unanime e acaloradamente sobre Joaquim Lopes, não obstante ser o mais moderno. 

Falúa, gravura, João Pedroso, 1860.
Imagem: Hemeroteca Digital

Esta rara cedencia dos direitos adquiridos significou como a consagração da alliança das forças para emprehender os actos de incrivel coragem e temeridade, cujos principaes vamos admirar. 

Em 16 de fevereiro de 1856, ás tres e meia horas da manhã, encalha, no baixo de Alpeidão, a escuna ingleza Howard Primrose Primrose.

O mar debatia-se horrivelmente, e parecia querer, no galgar furioso das suas vagas, engulir as proprias nuvens, que pela atmosphera corriam, como se fugissem, com a velocidade do raio. Quando as torres davam o signa] de soccorro, já o intrepido Joaquim Lopes, que está constantemente com um oculo, qual sentinela vigilante da humanidade, a revistar da sua casa, d'onde descobre a barra toda, os perigos que ahi, auxiliados pela violencia da tempestade, esperam, traiçoeiramente occultos nas ondas, o perdido navegador, exclamava á guarnição da falua:

— "Vamos salvar nossos irmãos! O mar é muito! mas os homens inspirados pelos sentimentos de Deus tem tanta força como elle!" E, largando de Paço d'Arcos, ia caminho do sinistro. Mas, chegados ahi, uma dificuldade invencivel zomba d'essa força: a falua não pôde navegar sobre o baixo, e, portanto, aproximar-se dos infelizes naufragados que, subidos nas enxarcias, viam,a seus pés, o navio despedaçar-se e absorver-se de mais em mais nas ondas embravecidas, e, a pouca distancia, retirar-se, por impotente, o unico recurso onde haviam chegado a conceber salvação!

Joaquim Lopes recua: por cobardia? desistindo da nobre empreza? Não! O nosso heroe não teme a morte; ao contrario, vae a Paço d'Arcos buscar um pequeno barco de pesca seu, que, suppõe, poderá navegar sobre o baixo, para de novo e decididamente affrontal-a.

Embarcação portuguesa com velas latinas, Lisboa, 1856.
Imagem: Royal Museums Greenwich

— "Partia-se-me o coração de dor," diz elle, "ao ver aquelles desgraçados a pedirem de mãos postas um soccorro impossível, e ao receiar que quando voltassemos houvessem já sido engulidos pelo mar."

Joaquim Lopes retirava, pois, com uma esperança no coração, e ás duas e meia horas da tarde, volvia no seu barquinho de pesca em demanda dos infelizes. Quando chegou, ja estes, agarrados aos fragmentos do navio, andavam á mercê das vagas.

— "Que é isso!" exclama elle aos seus camaradas, vendo-os empallidecer; "não é este, nem dobrado deste mar, que nos ha de metter a pique. Onde está o perigo é alli," prosegue apontando para o  logar fatal ; "alli é que estão doze horas de agonia, e, dentro em pouco, uma morte irremediavel! Avante! Pois. Nossa Senhora da Guia está-nos vendo. Ou morrermos todos, ou um nome eterno para os valentes que salvarem aquelles tristes!"

O patrão da falua do Bugio é tão eloquente como arrojoso e humanitario. O leitor já observou, por certo, que em vinte volumes de sessões da camara dos deputados ou dos pares, não se encontram dez discursos que valham uma d'estas brevissimas exhortações. Aquelle brado foi intensa faisca de lume que cegou os olhos do temor, e incendiou a energia, quasi desfallecida, da coragem.

Agora o leve barquinho não fende, vôa por sobre as ondas. De quando em quando desapparece entre uma nuvem d espuma; mas esta desfaz-se rapidamente ao sopro desenfreado do vento, e o barquinho torna à deixar-se ver, galgando com mais velocidade o cume das vagas. Nossa Senhora da Guia está, por certo, com elles, porque o valor com que se immergem no seio do perigo, e conseguem arrancar-lhe as presas, tem alguma cousa de sobrehunano.

Ás quatro horas eslava salva a guarnição da Primrose Primrose, composta de capitão e cinco marinheiros.

As primeiras das condecorações que hoje cobrem o peito generoso do ousado maritmo, foram devidas a este acto verdadeiramente heroico de coragem e humanidade.

Em março do mesmo anno, Joaquim Lopes ia sendo victima do seu arrojo e humanidade. Tirando debaixo de uma canóa, que se virou na praia da Sardinha, em Paço d'Árcos, um homem que ahi tinha ficado, por tal modo, já nas agonias da morte, se lhe agarrou e fixou nas pernas, pesando-lhe e embaraçando-lhe o nado, que, se não fosse o auxilio dos tres catraeiros que se lançaram logo ao mar, e, firmando-o pelo hombro, o ajudaram a subir para um rochedo, teria infallivelmente succumbido com o naufrago. Por esta acção difficil e arriscada, o premiou novamente a Real Sociedade Humanitaria, com a medalha de segunda classe.

Em 21 de fevereiro de 1858, pelas 8 e meia horas da manhã. encalha uma outra escuna ingleza, a British Queen, no fatal baixo de Alpeidão. Apenas as Torres dão o signal de soccorro, Joaquim Lopes convida os seus companheiros a seguil-o, e, embarcando na sua abençoada canoasinha de pesca, parte em demandados naufragados. D'esta vez, a sua piedade não é tão feliz, porque o navio submerge-se todo de um só jacto, quando os ousados barqueiros tentavam aproximar-se d'elle pela terceira vez; mas ainda conseguem salvar o capitão, para o qual milagrosamente se desprendeu uma verga onde se agarrou. Como o estado do naufrago reclamava promptos soccorros, fez-se, com graves riscos, caminho da torre do Bugio.

Chegado, porém, ahi, um vulto negro se descobre no logar do sinistro.

— "Naufrago!" gritam todos.
— "É um cão" , diz um.
— "Eia!" exclama Joaquim Lopes, "aquelle tambem tem vida, e é o antigo mais fiel do homem!"

E, lançando-se de novo ao abysmo, que por duas vezes quasi lhe ia sorvendo a fraca embarcação, salva esse fiel amigo do homem. Joaquim Lopes tem uma alma e um coração grandes por excellencia. Um homem d'estes nada tem a invejar aos outros: deve viver contente, satisfeito, alegre de si proprio. Em si tem a virtude, na virtude tem o merito, no merito tem a honra: n'esta virtude, deste merito, n'esta honra, gozos raros e inexcediveis para o espirito.
Joaquim Lopes! ao traçar d'estas linhas, envio-te, nas azas do pensamento, um abraço enthusiastico!
O governo britannico condecorou pela segunda vez o nosso heroe com a medalha de oiro, e os remadores com a de prata.

Ultimamente, pela occasião do naufragio do brigue francez Esthefanie Stéphanie, no qual Joaquim Lopes salvou tres marinheiros, alguns jornaes lembraram ao nosso governo um distinctivo mais honroso, para galardoar os serviços d'este homem. Que anachronismo!

Barcos no Tejo, Luis Ascêncio Tomasini (1823 - 1902).
Imagem: Palácio do Correio Velho

Oxalá que a lembrança continue a ficar no esquecimento; que esse ou outro distinctivo mais honroso não vá manchar o peito, onde o coração pulsou sempre pelo santo amor da humanidade. Se, porém, os nossos governos, que, sobre tal assumpto, com tanto siso hão andado, se decidirem a lavrar mais esse disparate, d'aqui reiterámos ao benemerito Joaquim Lopes os rogos que, em nome da dignidade das suas virtudes, lhe fizemos quando tivemos a boa fortuna de o conhecer pessoalmente, e a honra de nos acceitar como seu amigo.

Rejeite!

Na verdade, não chegámos ainda aos tempos das ordens de cavallaria approvarem o uniforme da jaqueta; e em quanto esperámos por elles, não confundamos os benemeritos com muitos parvos e malvados.

Joaquim Lopes conta perto de 59 annos, e, apesar d'esta edade, já não pouco avançada, nem propria para temeridades, continua a affrontar os perigos com o mesmo denodo e pericia que desenvolvia aos 30. Só tem de velho os cabellos e as rugas.

Talvez seja por isso que o governo o não tenha reformado, conservando-lhe o ordenado, e garantindo-o a sua mulher, no caso d'esta enviuvar, como já por vezes, com tanta justiça, ha pedido.

Homem privilegiado por Deus tem na fronte estampadas as virtudes do seu coração e a historia da sua vida. A extrema brancura de sua pelle, sua testa espaçosa, seus labios estreitos e cerrados, a penetração de seu olhar, o intumescimento rosado de suas palperas, revela-nos logo o homem que ha passado a sua vida mais banhado pela agua do que pela luz solar; o homem cujo cerebro se move e anima pela inspiração; o homem que, firme e ousado nas suas concepções, não afraca nunca perante o medonho aspecto dos perigos; o homem que, de um só golpe de vista, abraça e resolve as dificuldades; o homem, finalmente, que ha repetidas vezes vertido esse pranto de alegria que assoma aos olhos nos triumphos ganhos pelo amor da humanidade.

Mas o retrato de Joaquim Lopes desenha-se em menos palavras: é a Providencia dos naufragos na barra de Lisboa. (2)

Wilk Wieslaw, óleo sobre tela.
Imagem
Wilk Wieslaw no Facebook

A morte prostrou, finalmente, o benemerito homem do mar [...]

Quando olhavamos para esse velho, de corpo já alquebrado pelos 91 annos, mas em cujo espirito apparecia ainda de vez em quando umas chispas do antigo fogo, sentiamos um indizivel prazer, lembrando-nos de que elle era um dos poucos cujos serviços tinham sido moral e materialmente recompensados. Ainda n'este mundo não é tudo ingratidão e egoismo.

A sua casa estava toda cheia de commemorações dos seus actos de philantropia. Tinha cheias as paredes de diplomas conferidos por sociedades humanitarias portuguezas e estrangeiras, de quadros com as suas medalhas, nada menos de dez, de ouro e de prata, cada uma das quaes commemorava uma das suas luctas com o mar, luctas das quaes sabia sempre victorioso. Em uma lapide que os seus admiradores, srs. marquez de Fronteira e conselheiro Thomaz Ribeiro, lhe mandaram collocar na frontaria da casa, leem-se dois versos que bem o mostram.

"Ganhou que as trás ao peito, hábitos e medalhas,
não a matar irmãos, mas a rasgar mortalhas."

Era official da Torre e Espada e tenente honorario da marinha real, com o soldo correspondente.

O Patrão Joaquim Lopes morava em Paço d'Arcos numa casa terrea do lado esquerdo da estrada, junto ao posto fiscal. A casa, de pobre apparencia, tem para a estrada a porta de entrada e uma janella. Entre a porta e a janella uma lapide, coberta de crepe. Na casa da entrada uns homens collocavam a um canto tabolleiros com archotes e peças de pano preto que estavam sendo descarregadas d'uma carroça que viera de Lisboa.

A casa de Patrão Lopes no dia do funeral, rua Direita em Paço d Arcos, Revista Illustrada.
Imagem: Vila de Paço de Arcos

Á direita uma porta que dá ingresso ao quarto onde morreu o valente marinheiro. É uma casa sobre o comprido, com uma porta ao fundo. Encostada a uma parede uma pequena commoda tendo em cima um crucifixo e 2 castiçaes. Dependurado da parede, n'um pequeno caixilho dourado, viam-se as medalhas que em tempo conquistou, 3 d'ouro e 4 de prata, nacionaes e estrangeiras; o fallecido tinha mais 3 inglezas que as devolveu ao ministro inglez em janeiro d'este anno.

Em frente da porta vimos uma pequena cama de ferro bronzeado, onde jaz o cadaver coberto por um lençol.

Vimol-o. Está fardado com o seu uniforme de official de marinha ostentando os galões de 2.) tenente. (3)

O funeral de Joaquim Lopes foi urna verdadeira demonstração publica do alto apreço em que eram tidas as suas excepcionaes qualidades.

Flotilha do funeral.
Imagem: Hemeroteca Digital

A ellas se associou desde o chefe do Estado, que mandou o seu yacht Amelia seguir na esquadrilha, até ao mais humilde filho do povo que se encorporou no funebre prestito. 

O dia estava chuvoso e de vento rijo. Era a tempestade que saudava com os seus roncos ferozes, o cadaver d'aquelle que tantas vezes a vencera.

Em Paço d'Arcos juntaram-se os vapores Victoria, Relampago, Marianno de Carvalho e Lidador que rebocava o Salva Vidas em que foi conduzido até ao Arsenal o cadaver de Joaquim Lopes.

O cortejo fúnebre sobre as águas do rio Tejo.
Imagem: Navios e navegadores

Os srs. Antonio Ennes, ministro da marinha, Marquez de Fronteira, duque de Palmella, Francisco Costa, Jayme Arthur da Costa Pinto e o sr. presidente da camara de Oeiras e João da Cruz empregado do Salva Vidas, pegaram ás borlas do caixão, desde a humilde casa de Joaquim Lopes até ao embarque no Salva Vidas.

A fanfarra de Oeiras seguia o prestito tocando uma marcha funebre a que o sibilar do vento e os bramidos das ondas faziam um singular acompanhamento. No mar a viagem foi difficil e só pelas quatro horas da tarde chegou ao Arsenal o fluctuante cortejo.

No Arsenal foi feita a encommendação do corpo na capella de S. Roque, e depois o cortejo seguiu para o cemiterio Occidental, sendo o feretro transportado em uma carreta conduzida por bombeiros e marinheiros, que assim prestavam homenagem ao valente humanitario.

No prestito iam os cavalheiros que já mencionámos e os srs. Thomaz Ribeiro, ministro das obras publicas, Marianno de Carvalho, Baptista de Andrade, Eduardo Pinto Basto, alumnos da Escola Naval, jornalistas, corporação dos carteiros, bombeiros da Imprensa Nacional com uma corôa, escola Fernandes Thomaz, banda Guilherme Cossoul, e muitos cavalheiros de distincção que todos esperavam o cadaver no Arsenal.

O povo aguardava nas ruas a passagem do prestito ao qual se reunia engrossando o cortejo. No cemiterio estava uma força do regimento de caçadores n.° 2 para prestar as honras militares e a charanga da armada.

Patrão Joaquim Lopes.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Era já noite quando se concluiram as ultimas ceremonias frouxamente illuminadas pela lua, encoberta a espaços por formidaveis nimbos que se esfumavam no firmamento. A tempestade fazia o seu cortejo ao que ali ficava descançando em paz. (4)


(1) Soares, Manuel Lourenço, Trafaria e sua toponímia, subsídios para a sua história, Almada, Câmara Municipal de Almada, 1986
(2) Silva, Nogueira da, Archivo Pittoresco, vol. II n° 27, 1859
(3) Diário Illustrado, 22 de dezembro 1890
(4) O Occidente, revista ilustrada de Portugal e do estrangeiro, n.° 433, julho, 1891

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