sexta-feira, 9 de outubro de 2015

Sobre a questão corticeira de 1911

O Caramujo é um logar no concelho de Almada, á margem sul do Tejo, na bacia que este fórma em frente de Lisboa e conhecida pelo nome de Alfeite. É logar onde se exerce em larga escala a industria corticeira, estando ali estabelecidas muitas fabricas com uma população não inferior a 2:000 operarios corticeiros.

A questão corticeira, os incendios das fabricas do Caramujo.
Imagem: Hemeroteca Digital, Illustração Portugueza, 4 de setembro 1911

A industria corticeira é uma das mais nativas do país, que para a alimentar tem a primeira materia prima; mas pela mais incompreensivel das contradicções, é esta industria a que tem atravessado maiores crises entre nós, não pela falta de materia prima, que abunda, mas por faltas de trabalho ou de remuneração suficiente do mesmo.

Entretanto a cortiça tem largo consumo mundial, por suas varias aplicações, um consumo quasi tão importante como o da borracha, e o nosso país é o maior produtor e exportador desta materia.

Fabrica Villarinho depois do incendio.
Imagem: Hemeroteca Digital, Illustração Portugueza, 4 de setembro 1911

Estamos assim em presença de um problema economico por estudar, como tantos outros em nosso país, e cuja solução só se poderá encontrar no desenvolvimento do trabalho nacional para o que são precisos capitaes e saber profissional.

Emquanto não se conseguir este desideratum a nossa industria corticeira será apenas uma industria rudimentar de exportação para o estrangeiro por um valor minimo, e que nos é devolvida depois de manufaturada, nas suas diferentes aplicações, por valor muito maior. Em resumo, é uma mina portuguésa em que os portuguêses só auferem o trabalho do mineiro!

A ignorancia faz desconhecer as riquezas do trabalho, e como a maioria do capital está em mãos de ignorantes, é claro que se retrae para as industrias e procura na agiotagam ou no jogo das bolsas o rendimento de que precisa para não se desvalorisar.

O grande incendio das fabricas de cortiça do Caramujo. A fachada das fabricas incendiadas, foto A. C. Lima.
Imagem: Hemeroteca Digital

Isto é assaz primitivo, mas é, infelizmente, assim entre nós. Este é o estado das industrias em Portugal, incluindo a industria Mãe — a Agricultura.

Como se vê nem as industrias que mais razão tem de existencia no país, como a corticeira, escapam á regra geral, e bem pelo contrario é esta que, nos unimos tempos, nestes tempos de gréves, que estão sendo o pão nosso de cada dia, mais gréves tem levantado.

A ultima deu-se a meio do mes passado em consequencia de uma fabrica, a dos srs. Vilarinho & Sobrinho e de que é tambem proprietarío o sr. conde de Silves, fechar por falta de trabalho.

Francisco Manuel Pereira Caldas, filho de Marcelino José Pereira Caldas e de Maria Joaquina Gomes Vilarinho, nasceu em Monção a 8 de Dezembro de 1844. Era sobrinho de Salvador Gomes Vilarinho. 

Francisco M. Pereira Caldas.
Imagem: GeneAll

Foi um abastado proprietário e industrial de cortiças em Silves e no Caramujo. Militou no Partido Progressista, tendo sido deputado por Silves e por Oliveira de Azeméis. Coube-lhe o Título de Visconde de Silves, que foi criado por D. Luís I, por decreto de 28 de Outubro de 1886. 

Casou-se primeiramente com sua prima, Teresa Gomes Vilarinho, com quem teve duas filhas, e posteriormente com Albertina Moutinho, com quem teve uma filha e um filho. 

Foi-lhe atribuído por D. Carlos I, o Título de Conde de Silves, criado por decreto de 7 de Julho de 1897. Nesse mesmo ano, organizara a visita da família real a Silves. Faleceu em Silves, a 13 de Maio de 1915.

in Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, Editorial Enciclopédia Lda., Lisboa-Rio de Janeiro, Vol. XXIX

Após a morte de Salvador Gomes Vilarinho, em 1883, a empresa de Silves passa a ser administrada pelo seu sobrinho [Francisco Manuel Pereira Caldas]. Na década de 1880 instalou uma unidade produtiva no Caramujo, concelho de Almada.

Em 1911, numa altura marcada por crise, protestos operários e recurso à greve, a fábrica do Caramujo foi encerrada, não resistindo à crise que atravessava o sector. Desfecho igual se verificou na fábrica de Silves, isto no ano de 1915. Francisco Pereira Caldas, acabaria por morrer nesse mesmo ano.

in Grandes empresas industriais de um país pequeno...

Os proprietarios desta fabrica anunciaram com antecipação aos seus operarios que a fechavam, prevenindo-os ainda para procurarem trabalho noutras fabricas, mas estas não os puderam admittir, por terem pouco trabalho tambem pois só funcionavam cinco dias em cada semana.

O chefe Carvalho dirigindo os trabalhos de rescaldo nos armazens das fábricas Fernandes, Villarinho.
Imagem: Hemeroteca Digital, Illustração Portugueza, 4 de setembro 1911

Os operarios da fabrica Vilarinho & Sobrinho, na prespetiva [sic] de não terem trabalho, entenderam que o melhor era declararem-se cm greve, o que fizeram na vespera do dia da fabrica fechar, impedindo até que os proprietarios embarcassem uma porção grande de fardos de cortiça em quadros.

A Associação dos Corticeiros da localidade, que tinha intervido para resolver a situação, vendo que não conseguira obter trabalho nas outras fabricas para os operarios desempregados, deixou a estes a liberdade de procederem como entendessem, o que deu em resultado declarar-se a greve de todos os corticeiros de Almada, realisando estes um comicio na Cova da Piedade, insistindo pela admissão dos operarios sem trabalho, nas outras fabricas, isto imposto como ultimatum.

Fabrica Villarinho depois do incendio.
Imagem: Hemeroteca Digital, Illustração Portugueza, 4 de setembro 1911

Depois de algumas conferencias com os fabricantes e operarios por intermedio do sr. Governador Civil, conferencias sem resultado satisfatorio para os operarios, estes que se conservavam em comicio, sob a presidencia do operario Bartholomcu Constantino, dispersaram, não sem ter havido acaloradas discussões, terminando a reunião cerca das 7 horas da tarde.

O rescaldo.
Imagem: Hemeroteca Digital, Illustração Portugueza, 4 de setembro 1911

Hora e meia depois rompia um pavoroso incendio na fabrica dos srs. Vilarinho & Sobrinho, ateado por varios pontos do edifício, pondo em alarme toda a povoação.

Fabrica Villarinho depois do incendio.
Imagem: Hemeroteca Digital, Illustração Portugueza, 4 de setembro 1911

Dos pontos altos de Lisboa e da margem do Tejo foi logo visto o grande incendio, tratando-se imediatamente de enviar socorros assim como do Barreiro e de alguns navios de guerra.

Os socorros que primeiro chegaram foram os dos bombeiros voluntarios de Cacilhas com duas bombas e carro de ambulancias, mas, desgraçadamente, mãos criminosas cortaram as mangueiras, inutilisando o seu auxilio pronto.

O incendio cada vez mais se desenvolvia e não foi sem um trabalho estenuante que se conseguiu localisal-o quanto possivel numa arca de 10:000 metros quadrados, compreendendo a fabrica e barracões de depositos e algumas casas de habitação. Um horror!

O acampamento d'alguns moradores da fabrica incendiada.
Imagem: Hemeroteca Digital, Illustração Portugueza, 4 de setembro 1911

Pela madrugada foram presos corno suspeitos dez operarios dos considerados agitadores, incluindo Bartolomeu Constantino, os quaes deram entrada na cadeia de Almada, onde se tem conservado, em consequencia dos operarios corticeiros se oporem obstinadamente a que os presos sejam removidos para Lisboa.

Os corticeiros em frente da cadeia d'Almada a fim de impedir que os presos fossem conduzidos para Lisboa.
Imagem: Hemeroteca Digital, Illustração Portugueza, 4 de setembro 1911

Os presos negam em absoluto que tivessem intervido no incendio, alegando que á hora que elle se declarou, estavam em suas casas com a familia. A greve continua sem solução. (1)

Os corticeiros em frente da cadeia d'Almada a fim de impedir que os presos fossem conduzidos para Lisboa.
Imagem: Hemeroteca Digital, Illustração Portugueza, 4 de setembro 1911

Lisboa viu na noite de 22 para 23 d'agosto um grande clarão no outro lado do rio. Correu gente para os pontos altos da cidade a vêr o espetaculo e dentro em pouco sabia-se que estava a arder a fabrica de cortiça do Caramujo pertencente ao sr. conde de Silves.

O fogo apparecera em tres partes ao mesmo tempo e com tanta intensidade que se communicou aos depositos situados a dez metros de distancia. Quando os voluntarios d'Almada o quizeram debellar repararam que tinham sido cortadas as mangueiras.

O rescaldo.
Imagem: Hemeroteca Digital, Illustração Portugueza, 4 de setembro 1911

Pediram-se logo anciosamente reforços para Lisboa; embarcou muito material d'incendio com cavallaria e infantaria da guarda republicana que foram recebidas com manifestações hostis.

A fabrica ficou totalmente reduzida a cinzas e as auctoridades d'Almada julgando que o incendio era um acto de sabotage, levado a effeito depois do comicio da classe corticeira terminado momentos antes de elle se manifestar, prendeu o agitador operario Bartholomeu Constantino e pouco depois alguns dos seus companheiros.
Bartolomeu Constantino foi um dos anarquistas portugueses mais proeminentes, senão o mais proeminente, no período conturbado da transição entre a Monarquia e a República.

Ao contrário de quase todos os outros revolucionários do seu tempo, que após a queda da monarquia, se foram rendendo às mordomias e corrupção do novo regime republicano, Bartolomeu Constantino manteve sempre uma grande autenticidade de convicções, tendo morrido em 11 de Janeiro de 1916 na mais completa miséria, com 52 anos.

Bartolomeu Constantino.
Imagem: Hemeroteca Digital

Ao longo da vida esteve preso 36 vezes!

Tal como vem descrito no Assento de Baptismo nº 145 do Livro dos Assentos dos Baptismos da Igreja da Nossa Sra. do Rosário da Vila de Olhão (existente no Arquivo de Faro) e confirmado pelos Arquivos do Cemitério dos Prazeres em Lisboa (onde ocorreu o seu funeral), Bartolomeu Constantino nasceu em Olhão, na Rua das Lavadeiras, em 23 de Junho de 1863, filho de mãe solteira, Antónia da Cruz, e de pai incógnito, neto materno de António da Cruz e Rosa da Conceição [...]

Dotado de qualidades oratórias extraordinárias, tornou-se num exaltado apologista da divisão equitativa da propriedade e das riquezas, passando a sua palavra a ser indispensável nos grandes comícios revolucionários da época [...]

Na sua época — a viragem entre o séc. XIX e o séc. XX — assistia-se ao nascimento de sonhos e utopias, mas também de enganos e mal-entendidos.

Em Portugal, os monárquicos resistiam sem fé à deterioração do seu regime, e os republicanos acreditavam ingenuamente que bastaria destronar o rei para, num passe de mágica, o País reencontrar a sua antiga grandeza [...]

Bartolomeu Constantino era um anarquista muito próximo dos possibilistas, que apelava à mudança com um mínimo de violência, através da educação das massas operárias [...]

Devido ao seu esforço, primeiro fundou-se a União Socialista, em 1899, e depois a Federação Socialista Livre, em 1901 [...]

Em 1903 Bartolomeu Constantino deixa Lisboa e segue para o Algarve, onde aparece ligado ao Grupo "Libertos", de Faro.

Viu-se envolvido nos incidentes ocorridos nesta cidade, em Fevereiro de 1904, por ocasião da visita do primeiro-ministro João Franco.

Acusado de ser organizador destes distúrbios, é preso em Junho de 1904, na Associação Marítima, onde residia e, posteriormente, julgado em Olhão no dia 4 de Agosto.

É defendido por Afonso Costa (várias vezes futuro primeiro-ministro de Portugal durante a 1ª República) que se desloca ao Algarve [...]

Passa a viver em Setúbal, onde instalou em 1906 um estabelecimento de comidas e bebidas e, em Junho de 1908, fixa residência em Almada (Mutela) onde participa activamente nas lutas sindicais da Federação Corticeira.

Teve um papel muito importante nesta região, durante a revolta que conduziu à proclamação da República em 5 de Outubro de 1910 [...]

Após a República, promove o primeiro Congresso Anarquista português de 11 a 13 de Novembro de 1911 [...]

Regressa a Lisboa, sendo a sua última morada uma loja do Beco da Ricarda, nº 4, na freguesia do Sacramento.

Quando morre em 11 de Janeiro de 1916, na mais completa miséria, a emoção nas classes operárias foi enorme [...]

in Associação de Valorização do Património Cultural e Ambiental de Olhão

Quando na manhã seguinte os quizeram enviar para Lisboa o povo e os corticeiros da região agglomerados diante da cadeia mostraram que o impediriam a todo o transe, transigindo n'este ponto o administrador do concelho.

O administrador do concelho sr. Raul Pires conferenciando com commandante e alguns officiaes da forças da guarda republicana.
Imagem: Hemeroteca Digital, Illustração Portugueza, 4 de setembro 1911

As outras fabricas da localidade foram logo cercadas por forças da guarda republicana, afim de impedirem tentativas da parte dos operarios que unanimemente negam o delicto que lhes imputam.

As patrulhas da guarda Republicana impedindo a passagem.
Imagem: Hemeroteca Digital, Illustração Portugueza, 4 de setembro 1911

Os prejuizos na fabrica do sr. conde de Silves são avaliados em duzentos e cincoenta contos de réis que teem de ser pagos na sua quasi totalidade pela Sociedade Portugueza.

No dia seguinte a associação de classe dos corticeiros reuniu em Marvilla e n'um protesto contra as accusações feitas aos seus companheiros, e ás sua prisões, deliberou fazer a gréve geral e desde logo a começou.

As ruínas da fábrica de Villarinho.
Imagem: Hemeroteca Digital, Illustração Portugueza, 4 de setembro 1911

Reclamou um inquerito rigoroso, repelindo toda a acção n'um acto que continua a não considerar como de sabotage. (2)


(1) O Occidente, revista ilustrada de Portugal e do estrangeiro, n.° 1177, setembro, 1911
(2) Illustração Portuguesa, n.° 289, Lisboa, Empreza do Jornal O Seculo, 1903- , setembro, 1911

Artigo relacionado:
A visita do sr. ministro


Informação adicional:
A cortiça nos debates parlamentares da nação portuguesa (1839-1899)

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