sábado, 18 de julho de 2015

A caminho de Cacilhas... (parte V)

Graças aos braços vigorosos do meu remador, o barco afastou-se rapidamente do Cais do Sodré, contornou alguns navios adormecidos do sono quebrado por duras jornadas de pesca e, em seguida, dirigiu-se na direção dos navios de guerra que estacionavam em águas mais abertas. A partir daí, não mais foi que uma corrida direta, sem obstáculo, sobre o Tejo, que agitava ondas pesadas sob o céu muito sombrio polvilhado de estrelas.

Barra de Lisboa vista do Caes do Sodré.
Imagem: Internet Archive

Desembarcamos em silêncio. De um pequeno albergue, à beira do cais, vozes rudes se faziam ouvir, e o fumo dos fogareiros, onde assavam castanhas enviava-me o seu odor acre. Subi rapidamente o caminho.

Ela viu-me a chegar a partir do terraço onde esperava por mim, e abriu-me a porta com um ar de mistério. Uma pequena lâmpada ardia no vestíbulo. Um gato roçou-se contra mim. Ela passou-me á frente, pegou na luz e subiu umas escadas de pedra e eu segui-a. O desenho azul de um painel azulejos estendia-se ao longo da parede; o vestíbulo parecia, do primeiro andar, na claridade indecisa da pequena luz, , ruidoso e frio, afogado nas sombras das madeiras escuras. Por vezes, ela voltava-se, me enviando-me um sorriso, abafando o som de uma porta, até que chegamos ao terraço, depois de atravessar três divisões.

Aí ela parou. E, silenciosamente, ardentemente, na alegria dos obstáculos superados, ela entregava-me a sua boca como uma recompensa pela sua ousadia. Ela tinha um vestido leve através do qual a sentia toda. E foi uma verdadeira excitação, um estonteamento sem dúvida provocado, o toque sedoso deste tecido que parecia a pele de um fruto maduro. 

Então, ela dobra-se nos meus braços como um ramo bruscamente inclinado, — e, e adivinhando o meu desejo, escapou-se de um salto, ligeira, sempre como o flexível ramo, que largado, saltou sobre pressão, chicoteando no ar, depois, ela voltou, caminhando como nua, na graça toda branca do seu vestido, a passos muito pequenos brancos como para não ceder, a cabeça curvada sob o encanto esperado, pálida, desmaiada no escuro de sua mantilha.

Ela avançava e recuava, como uma gata, agarrando com as suas pequenas mãos de virgem os seus palpitantes, rodando num ritmo estranho o seu tamanho flexível de árvore jovem em seiva, oferecendo-se, contendo-se, muda e contente, a cúpula estrelada do céu e o hálito dos jardins floridos.

Era uma noite maravilhosa, uma noite de lenda. Um contra o outro, no alto do terraço, escutávamos passar sobre o sono do campo o silêncio do espaço. As estrelas estavam tão altas nos seus campos ilimitados que quase não brilhavam. Nenhum som mais se levanta, nenhuma emoção mais passa; assistimos à sombra em movimento, a noite caminhado para nos levantar, nos levar na maré serena com os ruídos perdidos, as brisas soltas e o perfume das flores.

Oh! tão longe ela me levou, essa noite de outono, tão longe agora no recuo dos anos, a outras noites parecidas, até uma parecida languidez balsâmica, uma mesma juventude de esperança... Bem que outra imagem se tenha posto a reviver no fundo da minha memória, que outros traços renovariam diante dos meus olhos o milagre da sua terna beleza, e eu me perderia uma vez mais no sonho regressado, no encantamento de memórias inesquecíveis.

Almada, vista tomada do Campo de S. Paulo, década de 1890.
Imagem: José Luis Covita

E, sem dúvida, o valor inestimável desse momento foi, que junto da bela senhora, na noite perturbada do sul, a única ideia que me tem foi ainda a da querida adorada cuja proteção, apesar das distâncias, jamais me abandonaria.

Duvidaria ela, minha companheira do acaso? Os nossos sonhos, em ambos, encontravam-se na mesma preocupação; seu amor-próprio em jogo, ela foi empurrada para as piores dúvidas e sob a calma de rainha chocava um ciúme violento. Mais inquieto do que nunca, naquele momento onde me daria tudo, ela tardava indefinidamente, tendo posto muito em jogo, ao que não ousava, por medo de um desastre, informar-se do resultada. 

Pressionada também pela expectativa do prazer, uma emoção durante muito tempo contida tremia a sua carne com imperiosamente agitada. Ela permanecia assim no impasse em que a colocava a impaciência de desejo e medo de não ter triunfado.

Então ela cerca-me com os braços, que fazem do meu pescoço uma guirlanda de beleza, e mergulhando nos meus olhos as palhetas de ouro dos seus, ela balbucia contra os meus lábios, com a voz trêmula, suplicante:

— Diz-me que a esqueceste, que me amas mais do que a ela, mais que tudo...

Senti o seu hálito, e depois o choque inflamado dos seus beijos. Encontrei-a toda à minha volta embrulhando-me, tentando arrancar-me pelo contato da sua pele nua um pensamento que não era meu.

Foi o reflexo súbito de uma luz revelada, uma tristeza imensa tristeza no fiasco das minhas vaidades, das minhas loucas concupiscências. E eu não soube fazer mais do que queixar-me para não a ferir muito.

— Porquê sempre a sonhar com a outra? Por qual maldade evocá-la aqui?
— Tu não me amas! atirou ela bruscamente.
— Porquê não querer amar senão sobre ruínas, não poder alegrar-se com o pensamento de um desastre?
— Tu não me amas!
— Não posso eu amar sem renegar-me?
— Tu não me amas. Tu não me amas! ela continuou com a voz que embargava o seu brilho, e que se tornava rouca, terrível como o grito de uma fera ferida.

De repente, parou de falar. Todo o ressentimento subiu ao seu olhar, e a chama dos seus olhos brotava nos meus com um desprezo soberbo. Caímos no silêncio.

Amá-la, este escárnio! Amá-la, enquanto que um rosto querido acordava na minha imaginação, derretia nos meus olhos o brilho dos seus caracois loiros, a ternura virginal da sua aparência, sua carne rosada plena em flor. 

Amar? Essa má perturbação à qual me levava a tempestade dos baixos pensamentos, essa febre que me pesava o meu sangue e que eu transportava como uma carga. Não! Não queria esse pesadelo, nessa noite assombrada por um querido fantasma, sob as fiéis estrelas e o grande silêncio purificador.

Subitamente, ela recompôs-se. Não queria admitir a derrota. O orgulho da sua beleza a iludia-a. Rebentou a rir e flagelou-me estas palavras:

— O que quereis vós que isso me faça que a tenhais esquecido ou não, que vós lhe pertençais ou não, já que vos vejo junto a mim, que vós esperais da minha boa vontade, que vós beijais um canto da minha mantilha como um escapulário abençoado? O passado pode ser uma mentira; o que o não é, é o momento presente, o teu braço à volta da minha cintura, é o teu lábio que toma a minha boca e testemunha, apesar de ti, o teu amor. 

Que importa o vosso silêncio, porque é de vos possuir que o meu prazer é feito! O que eu quero, é dar-me — a senhora não pede nada!

Mais uma vez ela enlaçou-me — gata amorosa que recolheu as garras; no entanto, mais uma vez ela mostrou cruel, abafando sem conseguir o seu rancor de bela ofendida, tudo na esperança de um prazer pelo qual sufocava. Ser tomada, ser tomada novamente sob o grande céu grande que derramava a taças plenas na noite de outono as loucuras perdidas...

No entanto, quando ela me levou para o seu quarto e quando atrás de mim enquanto empurrava a porta, de repente fundiu-se em lágrimas. Não! todas as promessas de alegria estavam decididamente traídas perante a memória que não tinha podido vencer em mim e pelas quais se sentia insultada.

O capitão Joaquim de Deus devia chegar no dia seguinte, toda a possibilidade de se vingar se lhe escapava, de tentar uma vez mais a força da sua dominação. Já que ela se tinha oferecido, não podia mais recusar-se. E, encontrando-se desapontada, chorava. Agora tinha que entregar apressadamente à ameaça do marido precipitando a sua derrota.

Lisboa, Ponte dos Vapores, estudo para leque, Veríssimos Amigos, c. 1850.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Atirada sobre a sua cama, com a cabeça enterrada na almofada, soluçava a sua raiva impotente, a neta dos Mouros...

Sentei-me na beira dessa cama, baixa como um divã, e peguei nas suas mãos e aos os seus dedos, num jogo lento, unia os meus. Dizia-lhe e coisas vagas e doces como as que dizemos às crianças que não são razoáveis.

Por vezes, também, para apaziguar um soluço marcando a minha comiseração, beijava as suas pequenas mãos nas quais as veias azuis faziam um desenho aristocrático... E pensei, entre as frases encontradas rapidamente e repetidas sem cessar, o meio de me evadir dessa casa, de deixar intacta ao valente capitão a sua pobre senhora.

Ela não falou mais, possivelmente, não ousou olhar-me. Talvez resignada, esperou-me? Eu não sei. Inquieto então de não mais a lamentar, só pensava em fugir. Tinha imensa pena se sente diante de uma mulher em lágrimas. Apesar da oferta desta beleza soberana, apesar do gesto simples que teria sido suficiente para a conquistar, eu enchia-me de acusações, só pensava à minha fraqueza culpada.

O tempo passou, enquanto eu continuava a récita dos meus propósitos afetuosos; e o tempo, após a emoção e as lágrimas, na tepidez calor da almofada, trouxe o sono à senhora.

O Pesadelo, John Henry Fuseli, 1781.
Imagem: Wikipedia

Abandonei as suas mãos. Escutei a sua respiração regular. Levantei-me. Ela ainda dormia. Então, empreendi essa coisa difícil de abrir a porta, de sair deslizando, de passar os corredores, a escada, e de chegar ao solene vestíbulo de madeira escura...

A noite estava alta, em plena glória de estrelas, em plena majestade de silêncio. As brisas sopravam passeando uma frescuras sã, fôlegos expiatórios de todas as impurezas do dia, de todas as vilanias que o meu coração se tinha enchido. E saí apressadamente.

Dificilmente voltaria ao caminho de Cacilhas que sobe na poeira amarelada ao longo dos muros altos de flores perfumadas.

Então não mais revi a bela senhora Amélia de Deus cujos olhos desfaleciam atrás da franja móvel das suas longas pestanas pretas [fim]. (1)


(1) Vignemal, Henri, Sur le chemin de Cacilhas, L'Instantané, Supplément Illustré de la Revue Hebdomadaire, 1901

Henri [Henry] Vignemal (1870-1941), pseudónimo de Maximilien-Henri van Ypersele de Strihou, foi um diplomata Belga, credenciado em 1894 em Berlim e em 1897 em Paris.
Em 1901 foi Secretário de Primeira Classe em Lisboa..
Filho de Joséphine Vander Nods (1846 - 1943) e Raymond van Ypersele de Strihou (1843 - 1931), diretor da plantação de cacau Ursélia Secunda, em Mayombe, participante nas atrocidades do Congo.

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