terça-feira, 14 de julho de 2015

A caminho de Cacilhas... (parte III)

Todos os dias ela vinha-se sentar nas vizinhanças do forte. Eu reencontrava-a, como que por necessidade, para apaziguar a desordem com que a sua ausência me deixava. Ela sorria de ser admirada, consciente da ajuda que a sua beleza dava ao quadro maravilhoso da paisagem.

Bilhete postal ilustrado, vistas e tipos, c. 1900.
Imagem: Lisboa Desaparecida

De fato, ela encarnava a essência amorosa destes dias inquietantes de outono e a promessa dos seus olhos não passava pelas intenções cuja natureza lânguida assaltava os sentidos.

— Estais triste, dizia-me ela.

Protestei; mas ela, batendo no peito, disse:

— Há qualquer coisa que me diz isso.

Seus olhos abraçavam-me convidando a lhe confiar a minha pena. Tentei apertá-la contra mim, tomar os seus lábios, gaguejando que a minha tristeza não era mais que um excesso de emoção. Mas ela afastou-se vivamente, quase cruelmente, e gritou:

— Ah! vós sabeis, eu sou a mulher do capitão Joaquim de Deus.

Então ela retomava a sua pose felina e ternurenta, enviando-me por debaixo da franja das suas pestanas o brilho dos seus olhos ardentes.

Joaquim de Deus era um capitão de longo curso que fazia, para uma companhia de navegação, um serviço regular entre Le Havre e Lisboa — profissão que lhe deixava apenas dois ou três dias por mês para passar com a sua esposa. Ela falava com orgulho desse homem, que lhe trazia durante momentos apressados uma paixão selvagem, que ameaçava estrangulá-la se algum dia ela o traísse, e que, visivelmente, ela levava nas palmas das mãos com o seu olhar lânguido...

— Se vós soubésseis como ele é belo!

Ela exaltava-se com umas lembranças quaisquer, que devante mim recordadas, tornavam-se de repente inebriantes à sua memória. Ela sentia-se crescer elogiando essa ausência.

Ela falava também da Quitéria, sua velha criada enrugada e escurecida como um macaco, que corria a pés nus pela casa, arrastando a sua preguiça suja, suas alcovitisses e os seus gritos de pássaro. Metida em casa por Joaquim, ela era, parece, uma dona ciumenta, sempre alerta, malcheirosa e malvada.

Velha camponesa, Paula Modersohn-Becker, 1903.
Imagem: Kunsthalle Hamburg

À noite ela abandonava-se aos seus propósitos familiares, desabotoava a sua vida à minha curiosidade, expunha o tédio das suas horas de solidão com belos gestos de odalisca. 

Caminhávamos lentamente neste lugar deserto, ao longo das paredes recentemente rebocadas da pequena igreja com telhado plano, janelas estreitamente gradeadas, tomando mais caminhos solitários debaixo de limoeiros e oliveiras, para chegar sempre à obsessiva magnificência do rio e de Lisboa mostrados num panorama ao qual não podíamos fugir.

Ela não via nada da magia do pôr-do-sol; ela falava, e toda a sua vida estava nas suas palavras. Também, era a hora das confidências, o momento fugitivo quando se sente a necessidade de abrir o coração, mesmo para ouvidos estranhos, este momento pálido e de arrependimento onde o céu se torna tão fino que parece morrer, onde as águas se encerram como um frio vazar de aço, onde a brisa de repente passa a fôlego funebre.

— Tudo exponho em vir aqui, perto de vós, não sei porquê, dizia-me ela. O mal que vos faço, Santa Virgem, posso crê-lo?...

Um luto parecia cair em frente sobre a cidade; as igrejas brilhantes tornavam-se parecidas a túmulos de mármore. Nos cantos verdes, poços de tênebras escavavam-se e pouco a pouco um vasto tabuleiro de xadrez de paredes brancas e sombras lilás cobria Lisboa...

Neste momento, cheio de preocupação, quase esqueci de dizer:

— Também eu, que mal eu fiz! Que criminoso eu faço!

Oh! como então ela se compôs e que interrogatório apressado, ousado, tenaz ela me fez sofrer! Os seus olhos espiavam nos meus a mentira, e eu senti-a moldável, a roupa flexível sobre as ancas, pronta a lançar-se, enquanto se encostava contra mim, excitando-me com toda a tentação da sua carne soberba.

Charme d'aimer.
Imagem: Delcampe

Então, coisa incompreensível, eu abria-me a essa estranha, a essa passageira do acaso; e isso foi uma profanação, que não me perdoo, por ter mostrado a uma curiosidade qualquer o tesouro das minhas puras alegrias, a ideal fonte da minha esperança. Uma demência de palavras levou-me a uma loucura amarga e cruel, atormentada pelos remorsos, vibrante de lamentos e desejos, durante a qual não soube qual abjeta e infindável ligação de ingratidão, também ela, continua.

Nessa noite de outubro, plena de doçura e perfumes, a evocação de um tempo apenas passado uniu-me aquela que foi a mais cara da minha vida. Sentia, ao pronunciar o seu nome, quais lamentos e qual misericórdia escorria do seu coração neste momento, e as lágrimas de seus belos olhos aprofundados na tristeza comunicavam-me uma emoção da qual a minha voz tremia.

Oh! Que esposa, que mulher, que deus algum dia fundirá a minha pobre alma a esse ponto, a convencrá de mais baixeza no meio do seu orgulhoso egoísmo? Aí via o fantasma querido a envolver-me, a levar-me nesta noite perigosa. Ouvia-o chamar-me com aquela voz que leva o silêncio das vastas paisagens, amplos horizontes, e baixo eu respondia: "Minha bem-amada! minha bem-amada!" Enquanto a senhora Amélia, como uma criatura estrangeira, me considerava um pouco interdito e quase lamentador do meu segredo revelado...

Panorâmica das duas margens do Rio Tejo tirada de Almada, Francesco Rocchini, c. 1900.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Nos dias seguintes a chuva caiu, — uma daquelas fortes chuvas que afogam dias inteiros, sujam o céu sem mais acabar a atiram a negras melancolias [continua...] (1).


(1) Vignemal, Henri, Sur le chemin de Cacilhas, L'Instantané, Supplément Illustré de la Revue Hebdomadaire, 1901

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