quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

O Caramujo, romance histórico (9/18), o caso dos gavetões


O CASO DOS GAVETÕES



APDG, Sketches of portuguese life, manners, costume and character, Costumes de Lisboa, 1826.
Imagem: Internet Archive

— Pois meu caro Botelho, eis-me aqui são e salvo, e quem me valeu foi o nosso Luiz Franco. Os soldados corriam já sobre mim, e sobre um capitão e um tenente, mas mettemo-nos na escuridão, e quando iamos a entrar por um corredor, abre-se a porta do quarto de Franco, que nos grita: “Para aqui, que estão salvos!” E juntando as obras ás palavras, agarra-me pelo braço e empurra-nos para o quarto.

Com a maior presença de espirito fechou a porta, apagou a luz, e disse-nos: "Se fallam, estão perdidos." Depois abriu a janella, e mandou-nos saltar para fóra.

N'este momento ouviu-se grande algazarra, e pude perceber estas vozes: "Abra, sr. Franco! Estes marotos fugiram para aqui. A v. s.a não se faz mal que é dos nossos; mas esse mariola do alferes Gomes..."

Eu não ouvi o resto, porque saltei da janella, e atraz de mim os meus dois camaradas. Quando estavamos na rua, e depois de Franco nos dar as espadas, gritamos-lhes “Não vens comnosco? “— “Não, vou com elles” respondeu Franco.

N'um instante achei-me no largo da Paschoa, e de lá fomos correndo até Valle de Pereiro, onde nos apresentamos ao commandante do l6.

— Mas não sabes tu que esse nosso amigo Luiz Franco é um malhado muito perigoso? disse Botelho. Já era conhecido por tal nas aulas, e consta que tinha relações politicas com sujeitos que estão bem seguros na torre de S. Julião.

— Eu sempre o tive por suspeito de malhado; mas o que não suspeitava era que viria a dever-lhe a vida.
— O homem é esperto. Se a revolução vingasse tinha feito uma acção boa, e do que utilisava: se não vingasse tinha feito tambem uma acção boa e util para elle, porque os officiaes que salvou haviam de defendel-o e pagar-lhe na mesma moeda, como coisa natural, e porque são muito estimados e pessoas influentes — disse um frade varatojano que estava presente, conhecido por famoso caceteiro.

— Mas, sr. padre, no momento em que o caso aconteceu qual è o homem que pode fazer esses calculos? Além de que seria uma alma muito vil, o que não é Franco. E arriscou a cabeça, sr. padre, arriscou a cabeça... Se vossa reverendissima lá estivesse, e ouvisse todo aquelle vozear da soldadesca, e a raiva que nos tinham...

— Historias! Não nos disse que gritavam a Franco: "A v. s.a não se faz mal, que è cá dos nossos?" E que depois de saltarem os srs. ofíiciaes pela janella, Franco disse: "Eu vou com elIes"? Lá se entendiam todos, e o cirurgiãosinho era cumplice na revolta.

— É verdade que elle, disse Gomes, estava completamente fardado e de espada, e tinha-se separado cedo da reunião dos ofliciaes no quarto do major, protestando ter de se levantar ao amanhecer.
— Mais uma razão para a minha affirmativa. Esses homens que cortam pernas e braços sempre estão com presença de espirito. A coisa foi bem calculada — observou o varatojano.

— Oh! sr. padre! Não posso ouvir-lhe denegrir uma boa acção.

— Agora ha de elle ir mui lampeiro contar o caso a Antão Diniz e á filha, que o hãode estimar ainda mais, exagerando a acção que praticou — disse Botelho.

Botelho tinha tocado habilmente no ponto vulneravel. A paixão exaltada de Gomes por Mathilde e o odio ao seu rival Franco accommetteram de improviso o coração de Gomes. O rosto tornou-se-lhe pallido, e os beiços estremeceram-lhe com uma ligeira crispação.

— E o que è feito d'esse Franco? perguntou o frade.
— No dia seguinte, respondeu Gomes, foi apresentar-se e deu razões satisfatorias, mas apezar d'isso ficou preso. Eu sou uma das testemunhas que elle deu em sua defeza, e hei de ir depor.

— O que não soffre duvida é que acompanhou a tropa revoltada até ao Rato: assim o affirmam os soldados — disse Botelho.
— E quem nos assegura que elle não pensava que os srs. officiaes saindo pela janella caiam na bocca do lobo? — notou o frade.
— Oh! se pensava! exclamou Botelho. Eu posso apresentar as provas, mas com uma condição, é que hão de dar-me palavra de que não dirão a ninguem por quem o souberam. São coisas confidenciaes, que eu sei em virtude do emprego que exerço. Depende d'isso o meu pão.

— Podes ficar descançado. Juro-o pela minha honra — disse Gomes.
— E eu tambem, ajuntou o frade. É para mim como se fora segredo de confissão.
— Muito bem. Aqui está a copia de uma carta. Lê Gomes. Eu não queria apresentar este documento, porque emlim não quero mal ao homem, mas sempre o mostro para se ver a verdade.

Gomes leu a copia de uma cartinha, em que Franco recommendava ao alferes Pereira tivesse cuidado em postar gente segura por debaixo das janellas dos quartos que não tinham grades, atim de não escapar ninguem do quartel para ir dar rebate á gente do governo, e que matassem logo quem pretendesse fugir.

Botelho observou que o original era do proprio punho de Franco, e que tinha sido achado nos papeis apprehendidos ao alferes Pereira. Mas a verdade era que, contrariado por Franco ter saido solto, fingira uma carta d'este, mettendo-a entre os papeis achados ao alferes, que lhe passaram pela mão e foram por elle examinados primeiro que o fossem pelo official maior da sua secretaria. Botelho imitou a lettra de Franco perfeitamente, assim como imitava todas as lettras com a maior fidelidade.

O plano d`este homem era afugentar por todos os modos Franco e Gomes da casa de Antão Diniz, para poder a seu salvo conquistar a mão de Mathilde, e para o conseguir tudo empregava, por quanto seguia a maxima de que os fins justificam os meios.

Gomes já obcecado pela lucta da sua paixão por Mathilde contra a gratidão que devia ao seu amigo, e sempre propenso a exaltações, exclamou:

— Oh que miseravel! Mas elle inclinou-se fora da janella, e deu-nos as espadas, e não vimos ninguem.
— É porque o alferes e a sua gente não fizeram o que se ajustou. E ainda bem que o não fizeram, aliás quem sabe onde todos estaríamos. Quanto ás espadas, elle sabia que nada podiam valer contra uma bala, e dentro do quarto só serviam de compromettel-o — disse o frade.

— Que maroto! exclamou Gomes. É infame!... Mas não, não; em todo o caso fui salvo por elle.

Botelho tinha previsto as hesitações de Gomes.

— Lê mais esta carta, disse elle. Conheces a lettra?

Era uma carta de Mathilde, mas verdadeira, em que dizia a Franco que não podia ter duvida do seu affecto em vista do que se tinha passado na Arealva, e de ter respondido a Gomes — que perdia o seu tempo. Que estivesse certo de que ella não cairia na boca do sapo.

— Do sapo! diz Gomes. Um sapo! Ah já sei. Agora entendo tudo. Elle queria ver-se livre de mim a todo o custo.
— Esta carta para Luiz Franco, notou Botelho, foi mandada com outras pelo correio á secretaria da guerra. Como não era de politica, ia ser inutilisada, mas eu salvei-a para t'a mostrar.
— Obrigado. Mas quizera antes que se perdesse. Como eu sou desgraçado.

Aqui asneou o frade, mas diligenciando profundar o golpe:

— Eu ignoro o contheudo da carta, disse elle; porém esse efeminado quando era estudante fez-me uma offensa que nunca lhe perdoei.

— Conte lá, sr. padre! disse Botelho, sem saber o que ia ouvir.
— Pois vou contal-a para v. s.as verem que esse Franco, além de traidor ao nosso rei, é tambem um impio, sem respeito pela religião e seus ministros.

E fazendo momices de hypocrita, e cruzando as mãos continuou:

— Todos sabem que as filhas de S. Vicente de Paulo costumam ir ao hospital de S. José exercer o seu santo ministerio de tratar dos enfermos, e todos sabem tambem que ellas são nossas confessadas. Ora ha no hospital uma capella, e ali iamos nós todos os dias ouvil-as de confissão.

Uma tarde de maio, pelas sete horas, estava eu na sacristia em um confessionario e os meus irmãos em outros, tratando de casos de consciencia com as irmãs da caridade, quando notei que a minha confessada, de perto de 30 annos, mas uma santinha, uma pomba sem fel, trazia pendentes do pescoço sobre o seio uns bentinhos, que continham a veneranda imagem da Senhora do Monte do Carmo e um pedacinho do santo lenho em que o Redemptor foi crucificado.

Estendi a mão para tocar os bentinhos, e os labios para beijal-os, quando esse demonio incarnado, Luiz Franco, sae de um gavetão d'aquelles em que na sacristia se guardam os paramentos, e outros que taes de outros gavetões, e começam a fazer-nos uma indecente chacota, interrompendo os actos da confissão, attrahindo com a vozeria grande numero de individuos, e sem respeito pelo logar e pelas pessoas, chamam-nos "frades barregueiros" e attribuem-nos acções indecentes.

Saimos todos vexados, e o resultado sabem qual foi? Posto que ninguem os acreditasse, os ímpios sempre conseguiram um grande mal, que foi prohibirem-se as confissões na capella.

Mas a justiça de Deus não dorme — exclamou o frade — e o mau quando menos o pensa é castigado, ás vezes por suas proprias mãos. Lá está elle enredado em novos crimes. E talvez mesmo esse desgraçado tenha caido na tentação de seduzir alguma menina de boa familia, para depois a abandonar, como fazem os pedreiros-livres.

APDG, Sketches of portuguese life, manners, costume and character, Saloia vendendo fruta, 1826.
Imagem: Internet Archive

Botelho mordeu os beiços de zangado, por temer que a anecdota dos gavetões despertasse o espirito gracejador e leviano de Gomes, e o inclinasse mais em favor de Franco; e tambem para não dar grandes rizadas. Mas Gomes estava tão preocupado, que só deu attenção á ultima parte das observações do frade, e respondeu:

— Vossa reverendissima parece que adivinhou. Não ha duvida, Franco é um malvado, e um grande malvado porque é muito rapaz e já faz d'estas. Mas em todo o caso salvou-me. Oh meu Deus! A cabeca estala-me!

— Diabo, disse Botelho comsigo. E elle a dar-lhe com a salvação!

E ajuntou em voz alta.

— Estalando te ia ella na tourada, diante de Mathilde. Nunca em minha vida vi rir o nosso amigo Luiz Franco com tanto gosto. Tanto que até chorou.

— Pois elle riu-se! Pois elle chorou de gosto! exclamou Gomes, levantando -se da cadeira com uma tal vivacidade e colera, que fez estremecer a reverendissima paternidade varatojana. a qual recompondo-se logo na sua serenidade habitual, disse:

— Nada de contemplações! Guerra com os pedreiros-livres! Neste caso os bons sentimentos não são mais do que fraqueza.

Deus até disse: "Se a tua mão peccar, corta-a, porque é melhor entrar manco no reino do céo, que sem esse defeito no inferno, manchado pelo peccado."

É preciso cortar os membros podres do corpo d'esta christandade, custe c o que custar, porque sem isso a nação portugueza fica infeccionada pelo peccado.

Emfim triumphou Botelho. Gomes quasi tinha a cabeça perdida, e nãoo respirava senão odio e vingança.

— Oh! exclamou elle. Quem me dera poder vingar-me!
— A vingança, disse o frade, não e propria das almas nobres como a de v. s.a: o castigo sim, que até o Salvador do Mundo o infligiu aquelles que traficavam no templo. E é mister não poupar os pedreiros-livres, porque são verdadeiramente aquelles a quem os livros santos chamam — lupi rapaces.

Passado algum tempo, Gomes saía da casa de Botelho todo indignado contra Franco. A maldade de Botelho proporcionou-lhe pretexto de ser ingrato ao seu bemfeitor.


Silva, Avelino Amaro da, O Caramujo, romance histórico original, Lisboa, Typographia Universal, 1863, 167 págs.

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